quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Números Obsoletos

18h30: Pedro despede-se dos colegas de escritório, desce ao subsolo pela escada. É o único exercício que fazia em seu dia-a-dia. Subia e descia escadas, no trabalho, no edifício onde mora, no shopping center onde almoça. Trabalha no 6º andar do edifício Rochaverá, na Avenida Doutor Chucri Zaidan. Pedro chega ao subsolo, anda até seu velho Impala, de 1968, herdado de seu falecido pai.

18h55: Pedro está na Avenida Ibirapuera, não passou por nenhuma avenida, pois sabia que iria pegar trânsito ao chegar onde estava. Ouviu no rádio que até a Avenida Indianópolis o trânsito fluía bem. Assim que ouviu o que desejava, botou o cd do Bob Dylan, que seu primo trouxera dos Estados Unidos para ele.

19h05: Começa a chover, ironicamente, começa a tocar “A Hard Rain’s A Gonna Fall”. O rapaz está em dúvida se entra na Avenida 23 de Maio ou na Rua Sena Madureira.

19h10: Está próximo à Avenida Lins de Vasconcelos. Cansou do Bob Dylan. “Dylan, não sei como dizer, mas eu vou te trocar pelo Stiff Little Fingers“ disse. Andou mais um pouco e viu uma ambulância, um aglomerado de pessoas, alguns carros de polícia e um motociclista acidentado. “Aumento de 500% nos acidentes de motociclistas, nos últimos 11 anos. Um aumento de 2.285% na taxa de óbitos entre 1996 e 2010, passando de 64 para 1.527, sendo 3 mulheres em 1996 e 139, em 2010, um aumento de, estrondosos, 4.533%” pensou. Que coisa triste, mas são dados. Dados do Ministério da Saúde. “Espero que o coitado não tenha sofrido nada grave. E que achem o culpado pela queda dele. Mas ele bem podia ter caído sozinho, ao fazer uma curva mal feita. Eu mesmo quase bati o carro ali uma vez.”

19h20: Muito próximo à Avenida Coronel Diogo, outra dúvida, não sabia se entrava na Avenida e ia até Avenida Dom Pedro I, depois até Avenida do Estado e entrar na Avenida Celso Garcia, ou seguia pela Lins de Vasconcelos, onde entrará na Rua da Independência, seguiria por ela até a Rua Dona Ana Néri, prosseguia nela para chegar na Avenida Alcântara Machado. Decidiu-se pelo segundo caminho.

20h: Chegou à Avenida tanto desejada. Um trânsito moroso sentido bairro. Havia colocado o cd “The Shape Of Punk To Come” do Refused, o último gravado, um dos seus favoritos da banda, e da vida. Outro acidente. Outro motociclista. Este, próximo a saída para a Rua da Mooca. “As pessoas bem podiam parar de reclamar que motoqueiro não respeita, que são foras-da-lei. Pra mim, fora-da-lei é bandido, estuprador, sequestrador, assassino, não motoqueiro. Tá certo que eles não andam na faixa, como prevê o código penal, mas ninguém fiscaliza isso, tornou-se rotina vê-los nos corredores de carro. E os motoristas de carro, ônibus e caminhão deveriam olhar pelo retrovisor e pelos retrovisores laterais. Se cada um fizesse sua parte, não bebesse, cumprisse o que está no manual do condutor, o trânsito seria funcional. Estabelecesse um limite de velocidade nas vias, pessoas conscientizariam-se dele e não mais teremos placas de velocidade, e o mesmo para rodovias. Tudo seria melhor. Mas o trânsito mata mais que arma de fogo de alguns países que vivem em guerra. Triste realidade. Triste.”

20h30: Nosso herói chega a Avenida Salim Farah Maluf, onde prosseguirá até a Rua Demétrio Ribeiro, que seguidamente muda de nome para Rua Itapeti, onde continua até a Rua Itapura, e de lá, segue até seu apartamento. No máximo, em 20 minutos eu chego. – disse em voz alta.

21h: Chegou em casa há 10 minutos. Subiu para o apartamento 33, foi ver se os filhos estavam dormindo e perguntar da escola para a ex-esposa. Logo subiu para o apartamento 41, o seu. Havia descascado a cebola, o alho e cortado a cenoura. Iria preparar um arroz a grega. Ligou a tv, e pôs no noticiário. Tomou uma dose de tequila, precisava sentir sua garganta queimar.

21h30: Jantar preparado. Arroz a grega, salada e frango ensopado, que a empregada tinha feito para seu almoço. A empregada sempre fazia comida a mais, para que ele jantasse. Ouviu a notícia sobre o acidente da Avenida Lins de Vasconcelos, o rapaz morreu na ambulância. “Coitado, mas é pior para a família. Talvez ele fosse filho único, talvez fosse pai de família, talvez estivesse saindo do trabalho para levar o pai que sofreu um derrame, ai seriam duas tragédias familiares. Quem sabe o que teria acontecido se ele estivesse olhado antes de entrar? Quem sabe um motorista que odeia motociclistas resolveu atropelá-lo só para massagear o ego? As respostas pouco interessam agora, é só mais um número para as estatísticas.” Desligou a tv, botou o prato no micro-ondas e foi dormir.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Crônica da meia-noite.

Foi para o bar. Não encontrou amigos. O garçom avistou-o:
- Que desejas?
- O de sempre.
Pôs, na frente dele, uma dose de solidão.
- Quer saber, misture uma dose de cada um desses que eu pedir, e dê-me em um copo maior. Ou numa taça, para ser mais poético.
- O que o senhor deseja então?
- Melancolia, angústia, raiva, ódio, traição, falsidade, mágoa, amargura, rancor...
- Dor também?
- Por favor. Acho que já está bom, qualquer coisa, peço novamente.
O garçom, cuidadosamente, pegava as garrafas, uma a uma, e mostrava-a. Feito isso, pegou a coqueteleira, pôs as doses, novamente, uma a uma, fechou e misturou. Pôs numa taça de vinho tinto, encheu três quartos. Segurou a taça, mirou seu conteúdo como um assassino mira sua vítima, com orgulho. Engoliu tudo em um gole.
Levantou-se e foi embora, antes do garçom dizer que tinha que pagar, avisou-o que voltaria mais tarde, para não se preocupar. Saiu, virou à esquerda, um rapaz o puxou para um beco, e assustado, disse-lhe
- Você não deveria ir lá. Eu sei. Eu sei. É perigoso, você vai se matar. Vai se matar, eu sei, eu sei.
- Sai daqui verme moribundo ambulante. A vida é minha, faço o que quiser.
- Você vai se machucar. Você vai machucar quem te ama. Você vai morrer, eu sei. Eu sei
Assustado, pensou em voltar ao bar, pensou em seguir seu caminho, pensou em vaguear, por fim, acendeu seu cigarro. Um trago, uma lágrima, uma nota perdida. Outro trago, outro arroto, outro dia de derrota. Mais um trago, mais uma decepção, mais uma noite solitária. Viu um bordel. Decidiu-se adentrar.
Entrou, viu as dançarinas. Duas sentaram-se ao seu lado, enquanto uma terceira sentava em seu colo.
- Oi amor, meu nome é Culpa, acho que você tá precisando de mim agora!
- Sai daqui Culpa, ele tá precisando é de Ressentimento, ou seja, eu!
- Fora vocês duas, suas vadias. Eu sou o que ele precisa, meu nome é Felicidade.
- Pensando bem, eu preciso das 3, podemos ir para o quarto?
As três, em coro uníssono, gritaram
- Claro!
E lá se foram os 4, para a suíte. Ficaram, mais ou menos, uma hora lá dentro. E só se ouvia os gemidos. Saiu de lá por volta da meia noite. A melhor transa que tivera. A melhor transa que tivera em tempos. Voltou ao bar.
- Ainda bem que não encontrei aquele mendigo maldito pelo caminho!
- Que?
- Nada, lembra da mistura que pedi, faça outra, por favor.
- É pra já, senhor.
O ritual seguiu a ordem. Tomou, desta vez, em alguns goles. Alguns goles intercalados por um cigarro que acendera.
Enquanto isso se desenrolava, o mendigo adentrou ao bar, mas só o observou de longe. Um gole, um trago, uma música pedida. Pedia, sempre, aquela música da nota perdida. Aquela música da noite perdida. Aquela música da vida perdida.
Começou a suar frio, sentiu sua consciência pesar, quebrou o copo na mão. Caiu. Sangrou. Ninguém disse nada. A banda tocou a marcha fúnebre. E o mendigo quebrou o silêncio.
- Eu avisei que ia morrer. Eu avisei, eu sei, eu sei. Eu tentei te impedir, mas você não quis. Mas você não quis. Eu sei, eu sei. Só para avisar, meu nome...
- Qual seu nome?
- Meu nome? Eu não me lembro.
- Sai daqui vagabundo.
- Eu devo estar embriagado, deixa eu fumar.
- Não, sai daqui vadio.
- Estou me lembrando, meu nome é Amor Próprio. É, Amor Próprio!
Pegou um cigarro e o acendeu, enquanto a alma do corpo que a pouco jazia, ascendia às estrelas.